Entenda os riscos da descaracterização jurídica e fiscal, e o papel essencial da contabilidade na preservação do modelo cooperativo.
Muito se fala sobre o cooperativismo como uma alternativa moderna, inclusiva e eficiente de organização do trabalho. No entanto, quando se trata das cooperativas de trabalho, a distância entre a proposta legal e a realidade prática tem provocado um cenário preocupante de insegurança jurídica. Isso se deve, em grande parte, ao uso equivocado – e por vezes oportunista -, desse modelo por empresas que buscam mascarar vínculos empregatícios e reduzir encargos.
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ToggleNesse contexto, a atuação da contabilidade vai muito além do registro técnico: ela assume papel estratégico na preservação da essência cooperativista, na orientação de atos legítimos e na prevenção da descaracterização da entidade, que pode representar não apenas o fim da cooperativa, mas o início de um passivo fiscal e trabalhista de proporções severas.
A identidade das cooperativas de trabalho e sua constante ameaça
Por definição, uma cooperativa de trabalho é formada por pessoas que se associam voluntariamente para prestar serviços de forma coletiva, com autonomia na gestão, repartição proporcional de resultados e respeito aos princípios cooperativistas. Não há subordinação, nem lucro distribuído como nas empresas convencionais. O foco não é o capital, mas a pessoa e o trabalho.
Contudo, o que se observa na prática é que muitas entidades constituídas sob o rótulo de “cooperativas” operam com lógica empresarial, mantendo controle centralizado, remuneração fixa e dependência direta de empresas contratantes. Nesses casos, a cooperativa, embora com CNPJ adequado, estatuto social registrado e até mesmo escrituração contábil regular, funciona como mera interposta de mão de obra, e não como sociedade cooperativa legítima. E é exatamente aqui que mora o risco: a forma jurídica não sobrevive à ausência de substância.
Ato cooperado, ato não cooperado: a fronteira entre a legalidade e a ficção
O cerne do cooperativismo está na realização dos chamados atos cooperados, que envolvem a prática da atividade-fim da cooperativa por seus próprios membros, dentro dos limites do objeto social e com finalidade coletiva. Quando esse tripé é respeitado, o ordenamento jurídico reconhece isenções e eventualmente até imunidades tributárias específicas, reforçando o valor social do modelo.
O problema emerge quando esse vínculo se rompe. Atos realizados com não cooperados, ou mesmo com cooperados, mas fora do objeto social, perdem a natureza de ato cooperado e se tornam atos não cooperados, tributados como operações comerciais comuns. Essa distinção, que parece meramente técnica, é na verdade um divisor de águas no tratamento fiscal e societário da entidade.
É a contabilidade que deve, com precisão, classificar, documentar e justificar cada operação, garantindo que as atividades registradas correspondam à realidade da execução. Uma omissão nesse ponto é suficiente para provocar a requalificação da natureza jurídica da operação pela fiscalização, com todos os impactos decorrentes.
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Sobras, lucros e a linha tênue que a contabilidade não pode cruzar
No universo das cooperativas, poucos conceitos são tão frequentemente confundidos – e perigosamente mal utilizados -, quanto a diferença entre sobras e lucros. O uso impreciso desses termos, especialmente em relatórios contábeis ou assembleias, pode gerar sérias consequências, inclusive a descaracterização da entidade cooperativa.
Enquanto as sobras são o reflexo direto da atuação coletiva dos cooperados, resultado da prestação de serviços realizada dentro do objeto social e entre os próprios associados, o lucro, por sua vez, surge exclusivamente da exploração de atos não cooperados. Ou seja, decorre de atividades que envolvem terceiros, estão fora da finalidade social ou extrapolam o escopo estatutário da cooperativa.
E aqui reside uma fronteira incontornável: o lucro, por definição legal, não se confunde com sobras e, portanto, não pode ser distribuído entre os cooperados. Essa vedação não decorre de uma simples norma fiscal, mas da própria lógica do cooperativismo, que não visa o lucro como finalidade, mas sim a autossuficiência coletiva.
A destinação correta desse lucro está claramente estabelecida: sua totalidade deve ser aplicada ao Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES), conforme determina a Lei nº 12.690/2012. Esse fundo, que tem caráter obrigatório e finalidades educacionais e sociais, representa não apenas um mecanismo de compliance, mas uma reafirmação do compromisso da cooperativa com o desenvolvimento dos seus membros e da coletividade.
Portanto, a função da contabilidade não é apenas identificar e separar essas naturezas econômicas, é garantir que a governança da cooperativa não ultrapasse os limites que a definem como tal. A distribuição indevida de lucros como se fossem sobras compromete a integridade da entidade e a expõe a autuações severas, tanto no âmbito tributário quanto trabalhista.
O papel esquecido dos fundos obrigatórios: reserva legal e FATES
Se a cooperativa não visa lucro, ela deve necessariamente dispor de instrumentos de autossustentação e reinvestimento coletivo. A constituição da reserva legal e do FATES (ou RATES, conforme a denominação adotada) não é mera formalidade contábil, é uma exigência legal e, mais que isso, um pilar de segurança financeira, governança e função social.
A reserva legal protege a cooperativa de prejuízos futuros e reforça seu patrimônio líquido. Já o FATES é destinado à qualificação dos cooperados, à assistência social, educacional e técnica, permitindo que a cooperativa cumpra sua vocação transformadora.
Quando esses fundos são ignorados, negligenciados ou contabilmente desorganizados, a cooperativa não apenas desrespeita a legislação, ela compromete sua capacidade de evoluir, capacitar seus membros e responder a adversidades econômicas.
A contabilidade precisa assegurar não só sua criação, mas também sua transparência, rastreabilidade e efetiva aplicação.
Quando a contabilidade se torna barreira ou ponte
Ao longo das últimas décadas, a contabilidade das cooperativas tem oscilado entre dois extremos: ora vista como mero apêndice formal do setor financeiro, ora colocada sob uma ótica puramente fiscalista. Mas nenhuma dessas abordagens é suficiente. A contabilidade precisa ser uma ponte entre o ideal cooperativista e a sua execução prática, conectando o estatuto à realidade operacional.
É ela quem deve alertar sobre desvios na forma de remuneração, falta de registros societários, contratos mal elaborados com tomadores de serviço, ou ainda, sobre a ausência de distinção entre atos cooperados e não cooperados. O contador que atua com cooperativas precisa compreender que sua função não é apenas lançar números, mas interpretar intenções e modelar estruturas. Ele atua não como um cronista dos fatos, mas como guardião da identidade jurídica e tributária da cooperativa.
Conclusão
Cooperativas de trabalho são, por essência, organizações sociais e econômicas baseadas em confiança, autogestão e solidariedade. Porém, em tempos de insegurança jurídica e fiscalização cada vez mais criteriosa, a forma correta é insuficiente sem a essência respeitada. O papel da contabilidade é zelar para que essa essência seja preservada, garantindo a legitimidade das operações, a transparência na gestão e a blindagem contra requalificações indevidas.
Em um cenário de riscos crescentes e interpretações fiscais cada vez mais rigorosas, a contabilidade torna-se o eixo central de sustentação da cooperativa legítima. Não se trata apenas de cumprir obrigações, mas de manter viva a razão de ser do cooperativismo.
Uma estrutura cooperativa sólida começa com base contábil bem feita. Se sua cooperativa precisa de diagnóstico, ajuste ou reestruturação, a Zannix Brasil Contabilidade pode ajudar. Possuímos expertise, tecnologia, estratégia, técnica e responsabilidade.