Existe um momento em que o país deixa de discutir “falhas” do processo legislativo e passa a encarar uma realidade mais amarga: a deturpação não é um desvio – é a estratégia.
Esse momento chega quando a prática dos “jabutis” deixa de ser eventual e passa a ser rotina operacional: inserir dispositivos estranhos ao tema central de um projeto, empacotar interesses específicos em textos de grande apelo público e acelerar votações sob a lógica do “depois a gente vê”.
Não é apenas um problema de técnica legislativa. É um problema de honestidade institucional.
E quando isso ocorre sob a condução do governo federal – com frequência, previsibilidade e aparente tranquilidade política – a conclusão é inevitável: há uma mecânica de poder se impondo sobre a integridade do Direito.
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ToggleO jabuti não é “curiosidade do Congresso”. É contrabando normativo.
No Brasil, chama-se “jabuti” aquilo que não deveria estar ali: matéria estranha ao objeto do texto principal, acoplada como quem esconde algo no fundo da mala. O termo jurídico é ainda mais grave: contrabando legislativo, porque descreve exatamente o que acontece: a norma “pega carona” num veículo legislativo que não foi desenhado para ela.
O problema real não é a criatividade de quem insere. O problema real é a lógica que sustenta a inserção: se o tema for polêmico, caro, impopular ou juridicamente questionável, ele é empurrado para dentro de um texto maior, preferencialmente com urgência; preferencialmente com “cara de consenso”; preferencialmente em um momento de distração pública.
E aí nasce o roteiro mais perverso da política fiscal brasileira: mudar regras estruturais sem que a sociedade perceba a mudança enquanto ainda havia tempo de impedir.
A fraude não é apenas moral: é um ataque ao devido processo legislativo.
Há um ponto que precisa ser dito com todas as letras: o jabuti não é só feio. Ele é desleal. É sobretudo, antidemocrático.
O processo legislativo existe para que a sociedade – direta ou indiretamente -, saiba o que está sendo discutido, possa pressionar, possa criticar, possa sugerir, possa reagir.
Quando se injeta matéria estranha num texto em tramitação, especialmente em mecanismos acelerados, o que se faz é sonegar informação e reduzir deliberadamente o espaço de debate.
O próprio STF, que teoricamente seria o guardião da Constituição, hoje, lamentavelmente, é um Poder totalmente politizado e sobretudo desprovido de qlaquer resquício de crédito da sociedade, outrora já decidiu, por exemplo, que o Legislativo não pode incluir em lei de conversão de medida provisória matéria estranha ao tema originalmente tratado, justamente por ferir a exigência de pertinência temática e comprometer o devido processo legal.
A essência dessa crítica, porém, transcende um rito específico: a Constituição não foi feita para permitir emboscadas legislativas.
A normalização do abuso: quando ninguém mais finge constrangimento
O ponto mais aterrador não é a existência de jabutis – é a ausência de vergonha institucional. A sensação, para quem acompanha o ambiente tributário e regulatório, é que o país vive uma era de descaramento legislativo: o governo insiste, o Congresso engole, e a sociedade só descobre quando a norma já está em vigor.
E quando a sociedade descobre, já não se discute mais se foi certo ou errado: discute-se apenas “como cumprir”, “como se adaptar”, “como reduzir o impacto danoso”.
Esse é o sinal de que a distorção venceu: o Direito deixa de ser regra do jogo e vira manual de sobrevivência.
O impacto real: o contribuinte não é um número – é quem perde previsibilidade, planejamento e fôlego
A dinâmica do jabuti é especialmente destrutiva em matéria tributária porque tributo não é um assunto neutro: ele afeta investimento, contratação, preço, caixa, margem, expansão, sobrevivência. Quando se alteram regras tributárias por dentro de textos inchados e acelerados, o recado ao contribuinte é claro:
- Você não planeja; você adivinha;
- Você não tem segurança jurídica; você tem risco permanente;
- Você não opera em ambiente estável; você opera sob ameaça normativa.
A consequência é objetiva: o custo Brasil cresce não só pelo valor do tributo, mas pela imprevisibilidade como ele surge.
A LC nº 224/2025 como exemplo emblemático: a lei “grande” que mexe pesado em tributação
Dentro desse cenário, um exemplo recente que merece destaque é a Lei Complementar nº 224/2025, publicada em 26/12/2025, cujo próprio enunciado deixa claro que trata de incentivos e benefícios tributários e também altera diversos diplomas legais, inclusive com reflexos de arrecadação e responsabilização em setores específicos.
O Senado noticiou a LC nº 224/2025 como norma que reduz incentivos, cria regras mais rígidas para concessões, limita renúncias e aumenta tributação/rigor em setores como bets e fintechs, além de tocar em temas como juros pagos a sócios (JCP) e responsabilidade solidária.
Isso, por si só, já coloca a LC nº 224/2025 no grupo das leis que não deveriam passar “em silêncio”. Ela não é um ajuste pontual. Ela mexe em elementos sensíveis de política fiscal.
O ponto da anterioridade e da noventena: quando “vigência” vira truque semântico
Aqui entra a sua crítica mais importante – e é justamente onde o texto precisa ser preciso para ser irrefutável.
Muita gente confunde (e muitos agentes públicos exploram essa confusão) a diferença entre:
- Vigência (a lei “existe” e está formalmente em vigor); e
- Eficácia tributária (a partir de quando certos efeitos podem ser cobrados, respeitando anterioridade anual e/ou noventena).
A LC nº 224/2025, conforme análises técnicas publicadas logo após a sanção, tem regras com datas de efeitos diferentes, exatamente porque alguns pontos estão sujeitos à anterioridade nonagesimal (noventena), enquanto outros podem produzir efeitos em 1º/01/2026, a depender do tributo e da natureza do dispositivo.
Ou seja: o jogo político costuma operar assim – “entra em vigor agora”, mas “cobra depois”; ou “entra em vigor agora” e “aplica parte depois”; e, no meio desse emaranhado, o contribuinte é empurrado para um labirinto de datas, exceções, regras de transição e interpretações.
E é aqui que a crítica ganha corpo: mesmo quando a lei tenta formalmente respeitar anterioridades em determinados trechos, o método continua sendo agressivo, confuso e hostil ao planejamento, porque a alteração chega no fim do ano, com enorme impacto, e força o mercado a correr atrás do prejuízo.
O ponto não é apenas “se houve noventena em cada item”. O ponto é o abuso do calendário legislativo e a insistência em fazer do contribuinte um refém do susto.
A violência legislativa de fim de ano: a tributação como emboscada de calendário
Existe uma prática recorrente em matéria tributária que raramente é chamada pelo nome: covardia de calendário.
Publicar lei relevante no apagar das luzes do ano, com efeitos a partir de janeiro (para o que for possível) e com uma colcha de retalhos de datas para o restante, é um modo de impor mudanças com mínima reação social, mínima mobilização setorial e mínima chance de contenção política.
Isso não precisa, necessariamente, violar formalmente a noventena em cada dispositivo para ser eticamente indecente e institucionalmente abusivo.
A lógica é: “o ano acabou; o Congresso entra em recesso; o mercado fecha balanços; e o contribuinte que se vire”.
O Congresso como corresponsável: quando o Legislativo aceita ser ferramenta
Nada disso se sustenta sem complacência legislativa. Porque o jabuti não “passa sozinho”. Ele passa quando:
- Relatorias aceitam textos inchados e pouco transparentes;
- Lideranças votam com pressa;
- Debates são reduzidos ao mínimo;
- Divergências são tratadas como ruído, não como obrigação democrática.
O STF já enfrentou a ideia de pertinência temática e limites a “matéria estranha” em certos contextos justamente para coibir esse tipo de manobra.
Mas a realidade política mostra que, se não houver custo institucional, a prática continua – e a jurisprudência vira apenas nota de rodapé.
O que isso faz com o Estado de Direito: a Constituição vira obstáculo, não fundamento
Quando jabutis se tornam rotina e alterações tributárias pesadas são empurradas por textos extensos, o país adoece juridicamente de um modo muito específico: a Constituição deixa de ser o centro do sistema e passa a ser um problema a contornar.
A mentalidade é esta:
- “Vamos aprovar primeiro”;
- “O Judiciário que resolva depois”;
- “Se derrubar, modulam efeitos”;
- “Se não derrubar, arrecadou”.
Isso não é democracia madura. Isso é aposta institucional: uma roleta russa de legalidade em que o contribuinte é o prêmio.
O recado final ao contribuinte: vale tudo – e você que arque
Ao fim desse processo, o que o Estado comunica, na prática, é:
- Planejamento é ingênuo;
- Estabilidade é ilusão;
- Direito é variável política;
- E o contribuinte existe para financiar o improviso.
E quando isso se repete, o sentimento social não é apenas indignação. É desconfiança estrutural: o cidadão e a empresa passam a operar esperando a próxima surpresa.
Até quando? O problema não é o jabuti. É o ecossistema que o protege.
A pergunta que fica não é “como evitar jabutis” em tese. Isso é fácil: transparência, pertinência temática, debate real, prazo, responsabilidade política.
A pergunta verdadeira é: quem tem interesse em manter esse ecossistema funcionando?
Porque jabuti não é apenas artimanha legislativa. Jabuti é sintoma de um sistema em que:
- A pressa substitui o debate;
- O tamanho do texto substitui a clareza;
- E o choque substitui a transição.
Enquanto isso não gerar custo, continuará. E o país seguirá sendo governado por sustos – não por leis.
Conclusão – Ataques às instituições: quando o barulho choca e o silêncio corrói
É impossível ignorar um dado incômodo: o país reagiu com rapidez, indignação e força institucional aos acontecimentos de 8 de janeiro/2023. Independentemente de leituras políticas, houve consenso em um ponto essencial – instituições não podem ser atacadas.
E isso está correto.
O que chama atenção, porém, é o contraste com a completa normalização de ataques silenciosos, técnicos e travestidos de legalidade que ocorrem diariamente dentro do próprio processo legislativo.
Enquanto o 8 de janeiro representou um ataque explícito, visível e imediato às instituições, os jabutis legislativos representam algo mais sutil – e, por isso mesmo, mais perigoso: a corrosão interna das regras que sustentam o Estado de Direito.
- Não há quebra de portas;
- Não há imagens chocantes;
- Não há reação emocional coletiva.
Há apenas textos extensos, votações aceleradas, dispositivos deslocados e efeitos profundos que só são sentidos quando já não há mais como reagir.
O efeito institucional, contudo, é semelhante: a mensagem de que regras podem ser relativizadas, ritos podem ser atropelados e garantias constitucionais podem ser tratadas como obstáculos inconvenientes.
Se o ataque frontal às instituições gera repúdio imediato – como deve gerar -, a erosão silenciosa promovida por práticas legislativas abusivas deveria causar, no mínimo, igual preocupação. Porque instituições não se rompem apenas por explosões. Elas também ruem por desgaste contínuo, desprezo reiterado e banalização do desvio.
E talvez seja justamente aí que reside o maior risco: aquilo que acontece à luz do dia choca; aquilo que ocorre sob o manto da técnica passa – até que seja tarde demais.






