Reforma Tributária e o Simples Nacional: promessa de inclusão ou armadilha de isolamento?

“Do favorecimento ao isolamento: o Simples Nacional entre a cruz e a espada”.

1. A promessa da simplificação e o dilema da complexidade histórica

A Reforma Tributária nasce sob a bandeira da simplificação, quase como se fosse um ato redentor contra décadas de um sistema tributário caótico. No discurso oficial, a criação do IBS e da CBS representaria a superação definitiva da fragmentação entre tributos federais, estaduais e municipais. A promessa é de um modelo moderno, transparente, sem brechas interpretativas.

Mas essa retórica esbarra em um dilema que acompanha o Brasil desde a criação do IPI, passando pela guerra fiscal do ICMS até as incontáveis mudanças em PIS e COFINS: a simplificação nunca se concretizou plenamente. Cada tentativa de simplificar acabou gerando novos regimes especiais, exceções setoriais e distorções regionais.

O que se vê, portanto, é um padrão histórico: a simplicidade proclamada é sempre parcial. O texto constitucional estabelece linhas gerais, mas a execução depende de leis complementares, normas infralegais e da pressão de grupos de interesse. E é nesse terreno fértil que mora o risco: o que começa com amplitude e neutralidade pode terminar com uma nova camada de complexidade, ainda que sob outro nome.

2. Neutralidade: conceito econômico x realidade política

Entre os adjetivos mais repetidos no debate, talvez nenhum tenha mais apelo político do que neutralidade. Os defensores da reforma insistem que o novo modelo é neutro – neutro em arrecadação, para a economia, para o consumo. É uma forma elegante de dizer que o Estado não pretende aumentar a carga tributária.

Contudo, a neutralidade precisa ser examinada em dois planos distintos:

  • Macro neutralidade (arrecadação consolidada): o país como um todo mantém sua carga global. O governo continua arrecadando a mesma proporção do PIB em tributos.
  • Micro neutralidade (distribuição setorial): cada setor da economia sente a mudança de forma desigual. Serviços intensivos em mão de obra, como educação, advocacia e saúde, tendem a enfrentar aumento de carga, pois passarão a ser tributados em bases mais amplas. Indústria e comércio, em contrapartida, podem experimentar maior competitividade, já que a cumulatividade será mitigada.

Esse ponto é crucial para compreender o impacto no Simples Nacional. Quando o governo afirma que a reforma é neutra, ele se refere ao nível macro. Mas, para o pequeno empresário, a neutralidade pode ser uma miragem. A redistribuição da carga entre setores e a mudança na dinâmica de créditos podem significar perda de mercado, aumento indireto de custos e dificuldade em competir. Em outras palavras: a neutralidade é real para a União, mas relativa – e até ilusória – para os pequenos negócios.

3. Amplitude: crédito financeiro e a ilusão da universalidade

Se a neutralidade é a promessa política, a amplitude é a promessa técnica. O coração do IVA moderno, adotado em dezenas de países, é o crédito financeiro amplo. Isso significa que qualquer gasto realizado pela empresa para fins de sua atividade econômica gera crédito integral de IBS ou CBS. O critério não é mais o conceito nebuloso de insumo, mas a objetividade de toda despesa vinculada à geração de receita.

A lógica é simples e poderosa: se toda compra gera crédito, desaparece o incentivo para litígios intermináveis sobre o que pode ou não ser creditado. É uma ruptura conceitual em relação ao PIS/COFINS, em que discussões sobre “essencialidade” e “relevância” entupiram os tribunais.

No entanto, essa amplitude esbarra na tradição brasileira de criar exceções. Produtos como combustíveis, cigarros, telecomunicações e bebidas já se articulam para obter regimes diferenciados. E se a amplitude começar a ser fatiada, a promessa de simplificação se desfaz, dando lugar a um novo mosaico de particularidades.

Mais grave ainda: para os pequenos negócios, a amplitude pode se revelar um conceito seletivo. Se o crédito amplo não incluir as compras feitas de optantes do Simples, o regime que deveria proteger os pequenos se converte em barreira de acesso. A universalidade, nesse caso, deixa de ser universal.

4. O Simples Nacional como ponto de fratura da reforma

Entre todas as incertezas da Reforma Tributária, talvez nenhuma seja tão sensível quanto o destino do Simples Nacional. A EC 132/2023 assegurou a sua manutenção, mas a LC 214/2025 trouxe o primeiro choque de realidade: a sobrevivência do regime não garante que sua lógica permaneça intacta.

O ponto de fratura está no crédito tributário. Durante anos, quem comprava de optantes do Simples não podia se creditar de PIS, COFINS, ICMS ou ISS. Isso criava um regime paralelo, em que a vantagem de simplificação para o pequeno virava desvantagem competitiva no mercado B2B. A LC 214 abriu a porta para que aquisições de fornecedores do Simples possam gerar crédito de IBS/CBS – mas sob condições específicas, nem sempre vantajosas.

Assim, o Simples deixa de ser apenas um regime simplificado e passa a ser um laboratório de dilemas: ou permanece isolado, sem gerar créditos, ou adere a regimes híbridos, com novas obrigações acessórias, renunciando à pureza da simplificação. Em ambos os cenários, a promessa original se enfraquece.

5. A tensão entre inclusão produtiva e isonomia concorrencial

O Brasil sempre tratou o Simples como um instrumento de inclusão produtiva, um regime de incentivo que permite a pequenos negócios sobreviverem em um ambiente hostil. Mas a lógica da RT é outra: a de isonomia concorrencial, baseada em neutralidade e amplitude.

Esses dois objetivos dificilmente convivem sem atrito. Ao privilegiar a inclusão produtiva, o Simples rompe a isonomia, porque isola parte da cadeia do sistema de créditos. Ao buscar amplitude e neutralidade, a reforma ameaça a inclusão, porque pressiona o pequeno a abandonar a proteção para não perder mercado.

Esse dilema revela um paradoxo estrutural: ou o Brasil continua tratando o Simples como um regime assistencial, mantendo os pequenos na periferia da economia formal, ou integra de vez esses negócios à lógica do IVA, exigindo deles um salto de maturidade administrativa que a maioria esmagadora não está preparada para dar.

6. Impactos estratégicos para os pequenos negócios

Os efeitos da RT sobre o Simples Nacional não são uniformes. Dependem do perfil de cada empresa. Senão vejamos:

  • Nas vendas B2C (varejo e serviços ao consumidor final): tende a sofrer menos, pois seus clientes não dependem de créditos. A simplicidade continua sendo vantagem;
  • Nas vendas B2B fornecedor de grandes empresas: é o perfil mais ameaçado. Se não gerar crédito para seus clientes, pode perder contratos e margens;
  • Prestadores de serviços especializados: além do risco de carga tributária maior, sofrem duplamente se não conseguirem competir em preço frente a fornecedores que geram créditos.

Para cada um desses perfis, a questão estratégica muda: vale a pena permanecer no Simples? Migrar para o Presumido? Adotar regime híbrido? A resposta não é universal, mas o ponto comum é claro: ninguém poderá simplesmente ignorar a reforma.

7. Conclusão crítica: promessa política, realidade econômica

A Reforma Tributária é vendida como a revolução que trará neutralidade e amplitude. Mas, para o Simples Nacional, essas palavras podem soar como ironia. A neutralidade é macro, mas não chega ao pequeno negócio. A amplitude é prometida, mas pode ser restrita justamente onde mais faria diferença: na integração do Simples à cadeia de créditos.

O resultado é um paradoxo inquietante: o regime que nasceu para proteger pode acabar isolando.

No fim, a questão central não é se a reforma trará neutralidade ou amplitude, mas quem terá acesso a elas. E, no caso das micro e pequenas empresas, a resposta ainda depende da maturidade política do país em reconhecer que inclusão produtiva não pode ser confundida com isolamento tributário.

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